Emmanuel Santiago nasceu em 1984, em São Lourenço/MG, o terceiro menor município do Brasil; as montanhas da Serra da Mantiqueira apertavam-lhe os calos. Com dezoito anos, foi morar em Mariana, a primeiríssima cidade de Minas. Lá passou quatro anos emparedado vivo pela Serra do Espinhaço, reclamando da vida com Cláudio Manuel da Costa em frente à Igreja da Sé e voltando bêbado para a casa com Alphonsus de Guimaraens. Por cerca de dois anos, foi confidente de Tomás Antônio Gonzaga, que andava de cabeça virada por conta de uma tal de Marília. Atualmente, reside em Jacareí/SP, entrincheirado no centro da cidade. Tem esposa, cinco gatos e algumas centenas de autores (muitos deles mortos) enfiados numas estantes. Depois de cinco anos de intenso convívio, cortou relações com Guimarães Rosa — por razões políticas — e hoje priva da intimidade dos poetas parnasianos, dos quais gosta de flagrar os desvios sexuais.
ENTREVISTA
CATRACA SELETIVA: O que difere o
poeta dos contistas e romancistas?
EMMANUEL SANTIAGO: No geral, a poesia
requer um contato mais íntimo com a palavra, mais detido e
minucioso. Trata-se, além disso, de um instrumento de percepção
mais fino da realidade, capaz de apreender e exprimir determinadas
sutilezas. Porém, há prosadores que se aproximam da poesia, assim
como há poetas que conseguem se beneficiar da visão mais
“panorâmica” que a prosa pode oferecer.
CS: Você se
considera um poeta? Por quê?
ES: Sim, mesmo porque
não considero o poeta nenhum ser especial (aliás, ninguém é
especial). O que faz de uma pessoa poeta é sua habilidade no trato
das palavras, o que, mesmo na ausência de uma sensibilidade apurada,
é possível desenvolver com muito treino e algum estudo. E esse
trato com as palavras transforma a linguagem verbal numa espécie de
prisma através do qual o real refrange, permitindo ao poeta perceber
certas nuances “invisíveis a olho nu”. O poema é sempre mais
interessante que o poeta, mesmo quando falamos de indivíduos
particularmente interessantes, como Rimbaud.
CS: Como é que você
descreve um ser humano o mais completo possível?
ES: Para mim, a
incompletude (ou, em termos psicanalíticos, a “falta”) é
constitutiva da condição humana. É justamente isso que nos move:
desejamos e realizamos porque sempre haverá algo que nos falta.
Quanto mais incompleto, melhor.
CS: O que é
escrever para você?
ES: Mais do que uma
forma de expressar, escrever é uma oportunidade de enxergar o mundo
e a mim mesmo por uma nova perspectiva, através do prisma da
linguagem poética, que opera um “deslocamento” das coisas em
relação a seu contexto habitual.
CS: Sophia de Mello
Breyner nos disse em sua Arte Poética II: “A poesia não me pede
propriamente uma especialização pois a sua arte é uma arte do
ser”. Está claro que para ela a técnica não é tão importante
quanto o sentir a poesia em todas as suas dimensões, e para você, o
que mais importa, a poesia, a técnica, ou ambos?
ES: Sei lá, desconfio
muito dessas abordagens essencialistas do “ser poeta”. Poeta,
para mim, é aquele que escreve poesia, logo, torno-me poeta na
medida em que escrevo: é o poema que me define como poeta. Acho que
uma sensibilidade aguçada e certa dose de inteligência (que talvez
possam ser considerados dons naturais), ajudam bastante e permitem
distinguir um grande poeta dos demais, mas um estudo sério da
técnica consegue fazer, até mesmo de um ser humano anódino e
mesquinho, um poeta razoável. Eu mesmo me considero um poeta com um
bom domínio técnico e algum talento natural, não mais do que isso.
CS: O que precede em
você o seu ato de criação, qual o sentimento que lhe ronda antes
do nascimento de um poema e ao fim dele?
ES: Cada vez mais, os
poemas costumam surgir de uma associação interessante de ideias ou
de algum assunto sobre o qual sinto vontade de escrever. Raramente,
hoje em dia, sento-me diante da folha em branco esperando surgir
alguma coisa. Se não tenho ideia de por onde começar a escrever,
nem me dou ao trabalho de tentar. Por isso, às vezes, chego a ficar
meses sem escrever um único verso. Geralmente, o poema começa a se
esboçar no papel depois de um tempo em que andei ruminando algo. Não
há nenhum estado de espírito específico que me leve a escrever. Já
o sentimento ao terminar um poema é, quase sempre, de alívio e,
algumas vezes, de contentamento.
CS: O poeta é um
fingidor?
ES: Sim, se você levar
em conta que o verbo “fingir” está ligado à palavra “ficção”.
O eu lírico nunca é o poeta, mesmo quando atende pelo nome dele
(“Vai, Carlos, ser gauche na vida”); trata-se de uma
fabulação. Contudo, “fingir” é diverso de “mentir”: na
mentira, há a intenção de enganar, de induzir alguém ao erro; na
ficção, por sua vez, simula-se algo que, do ponto de vista factual,
não existe, mas que pode tocar em verdades fundamentais, oferecendo
uma visão ampliada ou profunda da existência. Na Poética,
Aristóteles — para quem poesia é mimesis
(representação/re-apresentação do real) — diz que, enquanto a
História lida com aquilo “o que é”, originando um conhecimento
da ordem do particular, a poesia lida com o aquilo “o que pode
ser”, com as virtualidades contidas na realidade, consistindo num
saber de natureza universal.
CS: Por que “Pavão
Bizarro”?
ES: Antes de mais nada,
trata-se de um chiste autoirônico. “Pavões bizarros” é o modo
como Vicente de Carvalho, antes de ele próprio converter-se aos
ditames do parnasianismo, denominava jocosamente os poetas
parnasianos. Tem a ver com o preciosismo poético e a afetação
erudita desses poetas. No meu livro, flerto meio ironicamente, meio a
sério, com o parnasianismo e outras poéticas que tendem ao
virtuosismo técnico, como o barroco, o simbolismo e certos aspectos
vanguardistas. O volume está cheio de poemas metalinguísticos e
referências intertextuais. Isso fazia parte do projeto de empregar a
técnica em si mesma como provocação, visto que existe (ou, pelo
menos, eu pensava existir) determinado senso comum segundo o qual a
poesia é a manifestação espontânea, o transbordamento, da vida
interior do poeta. Além disso, essa ênfase na dimensão técnica da
poesia coexiste, no livro, com imagens e temas que podem ser
considerados por muitos como grotescos, isto é, “bizarros”, de
acordo com o vocabulário de hoje.
CS: A leitura da
poesia entre a juventude é praticamente escassa, na sua opinião por
que o jovem leitor contemporâneo regala esse desprezo pela arte
poética?
ES: Acho que isso se
deve ao fato de que a poesia exige maior preparo da parte do leitor,
tanto pelo caráter mais polissêmico e ambivalente de sua linguagem,
quanto pelo fato de, em nossa sociedade logocêntrica e baseada na
escrita, o verso ter se tornado uma forma contraitutiva de
organização do discurso. Imagino que, nas sociedades em que
predomina a cultura oral, o verso seja apreendido mais naturalmente
(contudo, é preciso levar em conta que o verso de hoje, concebido,
no geral, para a leitura silenciosa, não é exatamente a mesma coisa
que o verso que se destina à declamação e ao canto). A juventude,
por natureza, é imediatista; nestes tempos de internet e de
“modernidade líquida”, então, essa característica é
potencializada. Como a poesia necessita de concentração e de algum
grau de cultivo intelectual, tende a ser descartada como dificultosa
e chata. Ah, e não posso deixar de dizer que, via de regra, a
educação fundamental no Brasil faz um péssimo trabalho de
introdução à poesia. Não há uma continuidade na leitura de
textos poéticos, de maneira que não se desenvolve, no aluno, o
hábito de lê-los: vê-se alguma coisa de poesia em momentos
específicos e fica por isso mesmo. Isso acontece porque os próprios
professores não costumam ler poemas e sentem dificuldades em
trabalhar com eles em sala de aula. Ultimamente, alguns sucessos
comerciais colocaram em dúvida a hipótese de que não existe um
público consumidor ávido por poesia no Brasil. Contudo, quando se
olha mais de perto, percebemos tratar-se de uma poesia extremamente
sintética e de consumo rápido, baseada em chistes e trocadilhos,
ideal para o universo dos memes e das redes sociais (mesmo tendo sido
escrita antes do advento da internet).
CS: O que você acha
da literatura como denúncia?
ES: Acho extremamente
válida, desde que ela consiga manter algum grau de autonomia
estética, que consiga sustentar o interesse do leitor para além de
sua mensagem política, pois, cá entre nós, a eficácia da
literatura como instrumento de transformação da realidade é
limitada e, talvez, o autor tivesse mais resultados práticos
dedicando-se a outra atividade. No entanto, uma obra literária,
quando bem realizada esteticamente, pode nos oferecer uma compreensão
profunda da realidade social, mostrando-nos as fraturas desta,
ocultas sob o véu da ideologia.
CS: Eu costumo a
repetir uma frase de minha autoria quase sempre por aí “o poeta
como um míssil, a poesia em movimento”. Você como poeta, acha que
a poesia deveria invadir outros espaços, sair da academia, pois quer
queira quer não hoje, praticamente quem lê os poetas são os
críticos de arte e os próprios poetas? E como isso se daria, como a
poesia ganharia a atenção das massas?
ES: Sim, eu acho que a
poesia deveria estar disponível a um número maior de pessoas.
Entretanto, é preciso não cair na armadilha demagógica de, a
pretexto de democratizar o acesso a ela, acabar por barateá-la. Quer
dizer, melhor do que facilitá-la, adaptá-la ao leitor médio (cuja
formação, infelizmente, sabemos precária), seria preparar o
público para a leitura de poemas dos mais simples aos mais
sofisticados. A educação fundamental teria importante um papel a
cumprir em relação a isso, mas não o cumpre. Se nos lares
brasileiros lê-se pouco e a escola não dá conta do recado,
precisaríamos — nós, poetas — ocupar os espaços disponíveis e
construir pontes, seja com o pessoal que ouve hip-hop, seja com o
cara que está de bobeira na internet, o que for. Mas não sou muito
otimista nesse sentido. E veja bem: sou professor de Literatura do
Ensino Médio. É muito difícil captar a atenção do jovem para a
literatura, pois há uma competição muito desigual, em quantidade e
variedade, dos estímulos que a mídia oferece.
CS: Você está a
par da nossa literatura atualmente? Cite-nos um contemporâneo que
você gosta.
ES: Nos últimos anos,
tenho lido muita coisa de poesia brasileira contemporânea (prosa
muito menos) e, pelo que tenho encontrado, esse papo de que estamos
em crise, de que a poesia está morrendo no Brasil, é um misto de
ignorância em relação ao que se tem produzido e preguiça de
procurar. Eu não conseguiria citar apenas um autor; em vez disso,
prefiro sugerir uma lista de livros para quem se interesse em
conhecer o que de bom tem sido publicado por aí. Eis algumas obras
que me impressionaram (por ordem alfabética):
A comédia de
Alissia Bloom, de Manoel Herzog.
A dimensão
necessária, de João Filho.
A mordida do
cordeiro, de Leopoldo Comitti.
A perversa
migração das baleias azuis, de Alberto Lins Caldas.
Área de corte,
de Jandira Zanchi.
Cacau inventado,
de Wladimir Saldanha.
Lira de lixo,
de Adriano Scandolara.
Outros, de
Inês Monguilhott.
Rapinário,
de Renato Suttana.
Sumi-ê, de
Nydia Bonetti.
Terra sem mal,
de Waldo Motta.
Nesta lista, coloquei apenas autores que já considero “prontos”.
Ao lado deles, eu poderia listar mais umas duas dezenas de poetas
promissores, que, com certeza, nos próximos anos, produzirão obras
relevantes. Acho a atual geração uma das mais interessantes em
muitas décadas.
CS: Como se dá em
você a criação?
ES: Acho que acabei meio
que respondendo a isso na sexta pergunta. O que eu teria a
acrescentar é que meu processo de criação pode ser bem lento.
Alguns poemas, desde seus primeiros esboços até a versão
definitiva, podem levar anos para ficarem prontos. Os poemas que
compõem o Pavão bizarro, por exemplo, foram escritos entre
2003 e 2013 (39 no total). Desde então, escrevi 26 poemas, sem
contar dois poemas longos. Chego a ficar meses sem escrever um único
verso e, hoje, não sinto nenhuma angústia por conta disso. Descobri
que escrevo porque gosto e não por qualquer tipo de necessidade.
CS: A crítica
constrói?
ES: Sim. Uma boa crítica
possui o poder de chamar a atenção para aspectos relevantes de um
texto, apontando seja as qualidades da obra, seja seus problemas. Um
escritor pode aprender com uma crítica desfavorável, desde que tal
crítica seja honesta e generosa. Uma análise feita apenas para
desqualificar, sem uma real tentativa de compreensão do objeto
criticado, não é bem uma crítica; é uma implicância, uma
ranhetice.
CS: Para você o que
é mais importante, escrever ou ser lido?
ES: Ser lido é muito
bom, mas escrevo basicamente porque gosto. Embora meu processo
criativo tenha muito de cerebral, sinto um prazer quase sensual em
manipular as palavras, dobrá-las à minha vontade ou deixar-me levar
por elas quando necessário.
CS: Faça-me uma
pergunta.
ES: Para escrever
literatura erótica, é necessário estar num estado de excitação?
Em caso afirmativo, essa excitação é necessariamente sexual?
CS: O que é o amor
para você?
ES: Uma vez que, desde o
trovadorismo, centenas — se não milhares — de grandes autores se
dedicaram ao assunto, ao que se acrescenta sua completa banalização
pela indústria cultural, o amor tornou-se, simplesmente, o mais
difícil dos temas sobre os quais escrever. Nos tempos da graduação,
cheguei a compor um poeminha sobre isso, que não entrou no Pavão
bizarro:
Quando, será,
encontrarei
a cavidade do poema
que permita a
palavra
“amor”?
CS: O que você tem a
dizer para os leitores do catraca seletiva?
ES: Busquem
conhecimento!
Respondendo a pergunta feita pelo Emmanuel:
Acho que para escrever qualquer tipo de literatura é preciso ter algum tipo de excitação, seja ela sexual ou intelectual, primeiro que para mim escrever é fazer sexo com as palavras e delas retirar um prazer como no gozo ao dar fim a um texto. Mas quanto a excitação em si, acho que todas as vezes que escrevi uma poesia erótica ou uma cena erótica num livro, de alguma forma estava excitado, ou fui arrebatado por certo tesão ao terminar o que estava sendo escrito. Já me aconteceram algumas coisas, inclusive, bem interessantes após escrever algumas cenas e tal, mas vou deixar que as reticências digam por si só...
GOSTARAM DA ENTREVISTA COM O POETA?
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